Cada vez que vejo um noticiário ou folheio um jornal indeciso-me (do verbo indecidir) entre o suicídio e o genocídio. Suponho que deva agradecer aos senhores jornalistas a animação que trazem à minha vida e à dos demais mas penso que seria injusto atribuir o crédito da miséria dos cidadãos apenas a uma das muitas classes de medíocres a que está integral e inequivocamente entregue este nosso século XXI.
Se me é permitido um humilde desabafo, gostaria de partilhar que me sinto deambular por um mundo dominado pelo Ministério da Verdade. No entanto, ao invés da instituição lapidar da Pista Um de Orwell surge esta, ou não fosse o vigésimo primeiro um admirável novo século, elaboradaa como uma espécie de Wikipédia da História Que Mais Convém. O seu funcionamento é simples: re-inventam-se os factos históricos, espalhamo-los pela Rede e citamo-nos todos uns aos outros conforme achamos a informação adequada para o raciocínio que pretendemos desenvolver. É simples, ora atentemos em alguns exemplos:
Antes da crise a iniciativa privada iria salvar o mundo de si mesmo e o estado-empresa representava o futuro mais brilhante da humanidade, sendo o estado enquanto entidade pública um verdadeiro emplastro no caminho dos yuppies que iriam retirar a Humanidade das trevas – HOJE todos perguntamos onde está o estado, ei o meu subsidiozinho, ai que a saúde privada é muito cara, ui que não tenho dinheiro para os estudos dos putos, etc. O supremo argumento, a cereja no topo do bolo surgiu aquando o caso BPN: “onde, mas onde estava o Estado que permitiu tão ignobilmente que eu realizasse estas trafulhices?”
“SIM, EU PREVARIQUEI MAS SÓ PORQUE O ESTADO ME DEIXOU PREVARICAR. NÃO FOSSE O ESTADO E SERIA EU UM LEGÍTIMO PREVARICADOR”.
E mais um perfeito exemplo: aquele cromo do BPP que na semana da ruína do seu próprio banco, lançou um livro de auto-elogio! HAHAHA! Melhor exemplo de como re-inventar a história não deve existir.
Mas há mais, oh muitos mais, e talvez melhores casos de argumentação fictícia que se vai multiplicando como amibas num charco até se tornar numa verdade absolutamente indesmentível. Veja-se a teoria que defende que O-Laranjal-poupa-enquento-o-Roseiral-gasta-e-torna-o-défice-um-caos”. De onde vem isto? Já viram bem quanto era o défice nos anos de monarquia absoluta do Sr. D. Rei. Cavaco e a sua Dona Maria? O que andaram estes tipos a fazer na época das vacas mais gordas, quando o dinheirinho da CEE não parava de entrar e cair nos bolsos rotos de pseuso-empresários, boys e outro chupistas do aparelho laranja com zero resultados? Mais: défice democrático, hoje? Então e os secos-e-molhados, os tiros-na-ponte e mais os telefonemazinhos do Marques Mendes para a RTP a dizer “epá, olhai e o camandro…”.
Um clássico: “NATO foi criada para nos defender do Pacto de Varsóvia”. ESTÁ TUDO LOUCO?? O Pacto é POSTERIOR À NATO. O próprio ESTALINE pediu para aderir à NATO pouco depois desta ser formada.
A crise? Uma maravilha: começou no espectro mais abjecto do Capitalismo, o consumo desenfreado ligado ao crédito desenfreado para o pagar, e acaba no défice, obviamente causado pelo estado social, esse cabrão!!! HAHAHIHO!!!!!
Estranho é que o New Deal, que removeu os EUA da crise de 29 em conjunto com o rearmamento europeu, não era, na verdade, um plano de contenção do défice mas sim de investimento social. E esta, hein?
Para não falar, claro desses fabulosos modelos capitalistas internacionais: A ISLÂNDIA e a IRLANDA.
Não vale a pena. Estamos loucos. Não existe um Ministério da Verdade: existem milhões: cada gajo que (pensando bem, como eu) tem acesso à Rede e a um teclado inventa o que quiser para justificar aquilo que gostaria que mundo fosse por mais absurdo que seja. Os jornalistas espalham a loucura e o pânico. Já não se informa. Já não se pensa, atiram-se postas de pescada. Diz-se que tudo está na merda e, na ausência de argumento que justifique a afirmação, repete-se a mesma. Até ao partido que se quer chegar ao poleiro. Até ao meu clube de futebol ganhar outra vez o campeonato. Até conseguir comprar um telemóvel de cagagésima geração.
Como dizem USA Maricanos:
Oréver.
Viva o rei D. Cavaco I.
Viva o Capitalismo.
Viva o FMI.
Pim!
(foda-se)
Francisco de Goya - A Romaria de Santo Isidro. c.a. 1821/3 (Museu do Prado, Madrid)
É difícil descrever o verdadeiro significado deste quadro a partir de uma simples fotografia. Goya pintou-o durante os seus últimos anos de vida (tratava-se originalmente de um mural pintado em sua casa, posteriormente transferido para tela) e faz parte de um conjunto de obras conhecidos como "As pinturas negras". Quem conhece este quadro, juntamente com "Os Destinos" ou "Saturno Devorando os Filhos", entre outras, compreende o porquê da designação. Ao retratar uma massa amorfa de tão compacta de beatos vociferantes, de rostos deformados, que se arrastam por uma paisagem pintada num brilhante jogo de luz e sombra, Goya conseguiu retratar de forma ímpar aquilo que ele, e eu, procuramos não pensar da humanidade.
A Civilização humana nasceu nas cidades. Nas cidades nasceu a Ciência, floresceu o comércio, fez-se política e fermentaram-se ideais. As cidades criaram filósofos e grandes líderes. Nas escolas e nas universidades, nas tascas e nos palcos criraram-se e fizeram-se cair regimes. Da Babilónia a Estrasbugo, passando por Atenas, Roma e sim, até Lisboa, várias cidades foram sendo os grandes centros nevrálgicos da Civilização, passando o testemunho conforme o tempo foi alterando a geopolítica mundial. O que sucederá, então, de nós enquanto a humanidade é obrigada a ficar às suas portas em nome da especulação imobiliária, do lucro imediato e do desinteresse dos alcaides, dos senhores do betão e do punhado de ilustres priveligiados que podem pagar os custos de vida no centro das cidades?
Diz-se que a humanidade se apinha nas cidades. Não é verdade. Os humanos entopem os subúrbios. Subúrbios e cidades são dois mundos muito distintos. Nas tascas dos subúrbios não se discute a Democracia nem a Arte. Quanto muito, futebol, se para tal ainda houver energia depois de horas passadas no trânsito. Nos subúrbios não há teatro de vanguarda nem cinema independente. Vestimos o fato-de-treino ao fim-de-semana e levamos os miúdos ao mega-centro comercial local. Nos subúrbios não há vizinhos nem sentimento de pertença porque o prédio tem vinte-e-quatro andares de desconhecidos que aparecem e desaparecem constantemente porque a flexibilização dos mercados de trabalho retirou a estabilidade dos empregos de outrora.
Os centros nervosos do nosso mundo morrem porque estão vazios dessa massa crítica que são os trabalhadores, as pessoas comuns. Esvaziam-se dando lugar apenas a velhos que alguém espera que morram para transformar as suas casas em mais um edifício de escritórios de vanguarda, que provavelmente ficará vazio porque nem as empresas já podem pagar os arrendamentos exorbitantes, ou num centro comercial de nome estrangeirado de lojas todas iguais, ou em apartamentos de luxo tão assépticos quanto estéreis de ideias são os fashionables que os habitam.
Quando se fala na baixa natalidade, na elevada taxa de divórcios, no insucesso escolar, pergunto-me o que significaria para alguém passar as duas, três ou quatro horas por dia que dispende no trânsito do dormitório de betão ao escritório e vice-versa com os filhos, mulher ou marido. Pergunto-me quanto livros e periódicos se poderiam ler mais. Pergunto-me se então continuaríamos a dar tanta importância a telenovelas, futebol e reality-shows, pergunto-me se a mesma corja de políticos continuaria no poder se dispuséssemos de mais tempo para aprender e pensar. Quando se fala de despesa pública e de défice descontrolado pergunto-me quanto se poderia poupar em quilómetros e quilómetros de betão e alcatrão suburbano se milhões de pessoas não fossem enterrados em subúrbios. Quando se fala em poluição pergunto-me porque se controem estes cogumelos de cimento em vez de se prolongarem as avenidas das cidades, pensando logo em bom saneamento, prolongamento das redes de transportes públicos, em espaços comerciais e culturais adequados, em hospitais e escolas.
Coloco todas estas questões mas esqueço-me de que alguém lucra muito com todo este betão. Se eu fosse autarca, o meu voto interessar-me-ia muito menos do que uma contribuição de campanha e mais mil fogos no meu concelho concentrados num espaço irrisório e que significam mais mil contribuições autárquicas. Esqueço-me também que auto-estradas, escolas e hospitais são pagos pelos contribuintes, logo, é como se fosse de borla, enriquecendo os privados que os contrói e gere. Se eu fosse arquitecto provavelmente também não me interessaria construir casas boas e baratas para o proletariado: o que ficaria mesmo bem é vender casas de luxo a tipos com um "De" antes do apelido que possam aparecer em revistas de personalidades.
Em nome do lucro imediato, o Capitalismo continua a despejar os problemas de agora no colo das gerações futuras. Se as houver, porque parecemos produzir tanta descendência quanto ideias. Não temos tempo nem espaço para isso.
Eis, por fim, que se inicia um novo ciclo de depravação moral e intelectual no, já de si massacrado, sub-mundo da Internet. O mundo inteiro certamente se consterna perante o surgimento de mais um espaço, inteiramente novo, perfeitamente inconsequente, que mais um um anónimo criou sem outro objectivo que não seja o seu enaltecimento pessoal.
Sejam benvindos, incautos argonautas, a este meu altar.
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